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segunda-feira, setembro 23, 2024

Violação de direitos: pessoas atingidas pela descaracterização do Sistema Pontal podem ter seus modos de vida destruídos pela Vale

Na última segunda-feira (22), a Vale anunciou que dará início às obras preliminares para a construção da segunda Estrutura de Contenção a Jusante (ECJ2) no Sistema Pontal, em Itabira (MG). De acordo com a mineradora, a previsão é de que a obra seja concluída no primeiro semestre de 2025.

Essa ação faz parte das obras de descaracterização do Sistema Pontal. Porém, para a construção da nova estrutura, a mineradora precisará remover 17 famílias; demolir casas; criar vias de acesso; cortar vegetação; mudar trechos do sistema de esgoto de lugar; entre diversas outras ações que impactam diretamente na vida da população.

Entre os muitos problemas causados pelas obras relacionadas ao Sistema Pontal, há ainda uma série de violações de direitos que vêm sendo relatadas pelos moradores. Até hoje, a Vale não informou um plano para mitigar os impactos sociais, psicossociais e de segurança pública às centenas de pessoas que ficarão nas comunidades dos bairros Bela Vista, Nova Vista, Jardim das Oliveiras e Praia e que se tornarão vizinhas à estrutura de concreto e aço.

Assim, o Ministério Público, no âmbito de uma ação civil pública, determinou que a Assessoria Técnica Independente da Fundação Israel Pinheiro (ATI/FIP) trabalhe para auxiliar as pessoas atingidas na busca por reparações individuais e coletivas pelos danos causados pela mineradora.

Destruição dos modos de vida

A ATI/FIP vem catalogando os modos de vida dessas pessoas, na intenção de demonstrar uma clara violação de direitos causada pelos impactos das ações da Vale. Entre os registros já feitos, um movimento importante saltou aos olhos. Boa parcela das pessoas atingidas dos bairros Bela Vista e Nova Vista recriaram, próximo às suas casas, o ambiente em que viveram antes de se tornarem moradores da região.

É importante lembrar que muitas dessas pessoas são remanescentes das remoções promovidas pela empresa na região conhecida como Vila Camarinha, na década de 1980. A prática de retirar pessoas de áreas de interesse de exploração da Vale, em Itabira, não é uma novidade.

A Camarinha era um povoado que se iniciou nos anos 1950, com aproximadamente cinco famílias, e que passou por um boom populacional após a corrida garimpeira no município. Em 1980, depois do fechamento do garimpo, muitas famílias permaneceram em Itabira e, sem recursos, acabaram se estabelecendo na Camarinha, com auxílio da prefeitura local.

De acordo com relatos dos antigos residentes – e um estudo realizado pela Biogea Engenharia Ambiental, em 2015, a pedido da Vale -, as casas eram de pau a pique, casqueiros e lona; não tinham banheiro, nem  redes elétricas; e o abastecimento de água era precário.

Ainda assim, em 1988, a mineradora correu atrás da unificação de suas minas através do terreno “Minas do Meio”, justamente onde estava a Camarinha. Dessa maneira, uma permuta entre Prefeitura de Itabira e Vale, conforme a Lei 3.495, garantiu à empresa a posse do terreno da Camarinha. Em troca, a mineradora deu para a prefeitura 25 áreas em diversos pontos da cidade, somando aproximadamente 840 mil m²; o terreno denominado “Nova Vista”, com 25 mil m², para instalação das famílias removidas da Camarinha; e o valor de Cz$ 100 mil (cem mil cruzados) para a compra de material de construção para o assentamento das famílias.

Ainda de acordo com os registros do estudo, a Prefeitura organizou mutirões de construção das casas em que os próprios moradores atuaram como mão-de-obra. Cada família recebeu 32m² de área construída, num lote de 150m². A urbanização do bairro foi sendo feita ao mesmo tempo que as casas eram construídas. O documento ressalta que “nos dias atuais, as casas são de estrutura em alvenaria e acabamentos simples, não dispõem de grandes quintais”.

Restauração dos modos de vida

As pessoas remanescentes da Camarinha, na tentativa de recriar os modos de vida que levavam em sua antiga vila, e diante do pouco espaço que lhes foi destinado após as remoções, buscaram por alternativas viáveis dentro de suas novas realidades. Uma cultura muito arraigada entre eles é a do cultivo de hortas e pomares.

Para conseguir manter esse hábito, as pessoas começaram a ocupar áreas dentro dos terrenos da mineradora, mas também muito próximas às suas residências. Eles relatam que os espaços estavam se transformando em lixões e eram utilizados como depósitos de entulho. De acordo com esses moradores, a incidência de animais peçonhentos, como cobras e escorpiões era muito grande. Assim sendo, a iniciativa deles, além de promover a recuperação de um traço cultural vinculado à atividade agrária, ainda contribuiu para a prestação de serviços ambientais. Houve uma reversão do processo de degradação ambiental que encontrava-se em curso, gerando benefícios econômicos e de imagem para a proprietária da área, no caso a VALE, que – em tese – seria a responsável pela manutenção da salubridade daquele local.

 

À medida que as hortas foram sendo criadas, os terrenos foram limpos e as próprias pessoas investiram em material para cercar as áreas que iriam usar. As primeiras hortas criadas datam de meados de 2013, segundo as tomadas de termo realizadas pela ATI/FIP. O que se observa é um grande cuidado na manutenção desses espaços. Todos eles contam com delimitações usando estacas; arame farpado; portões com cadeado; telas de proteção; canteiros; pequenas benfeitorias para abrigar ferramentas e insumos; e viveiros de mudas.

Atualmente, mais de 30 hortas foram catalogadas. Todas elas estão localizadas em ocupações no terreno da Vale. Porém, conforme averiguado pela ATI/FIP, os proprietários nunca foram notificados pela mineradora e não há qualquer tipo de processo legal em relação à restituição de posse. Isso indica que a ocupação é “mansa e pacífica”, como reza a lei.

A ATI/FIP ainda confirmou que os proprietários dos plantios investem na compra de terra, sementes, adubo e fertilizantes. Nas hortas, essas pessoas plantam todo tipo de hortaliças, verduras, legumes, plantas medicinais, árvores frutíferas e grãos. Em sua esmagadora maioria, as colheitas são usadas para subsistência, porém ainda são realizadas trocas entre eles mesmos e vendas para vizinhos e conhecidos.

Essas hortas se tornaram importantes espaços de trabalho individual e coletivo, fortalecendo a malha social das pessoas atingidas residentes nos bairros Bela Vista e Nova Vista. Os relatos deles comprovam uma dependência emocional desses espaços e uma relação profunda com um passado que lhes foi tirado.

Agora, a construção das vias de acesso ao local que receberá a ECJ2, despertou nos proprietários das hortas o temor de ver esses modos de vida serem subtraídos novamente. Para resguardar os direitos dessas pessoas, a ATI/FIP notificou o Ministério Público com um dossiê formado por tomadas de termo com os relatos dos atingidos e relatórios fotográficos que demonstram a existência deles nas áreas que ocupam. A promotoria, por sua vez, recomendou à mineradora que se posicione sobre esta situação, já que envolve área de sua propriedade e aguarda por uma resposta.

Um dos caminhos que a ATI/FIP pensa em buscar é o da indenização individual a cada uma das famílias, pelas benfeitorias realizadas durante a posse dos terrenos, e a possibilidade de uma reparação coletiva que incluiria medidas como a criação de hortas coletivas e espaços de geração de renda.

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