Em ação classificada por deputados como “arapongagem”, a Kroll teria sido autorizada a acessar dados de computadores.
A Kroll Associates Brasil Ltda., empresa especializada em investigações corporativas, voltou ao centro das atenções na tarde desta quinta-feira (9), na reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) que investiga possíveis irregularidades na gestão e uso político da Cemig.
Mesmo sem ter um contrato firmado que garantisse confidencialidade, a atual direção da companhia energética do Estado teria permitido que funcionários da Kroll entrassem, na madrugada de 3 para 4 de dezembro do ano passado, nas dependências da empresa, acompanhados por uma assessora da Diretoria Jurídica, e copiassem dados sensíveis dos computadores.
A revelação foi feita em depoimento do ex-titular da Gerência de Direito Administrativo da Cemig, Daniel Polignano Godoy, uma das testemunhas interrogadas nesta quinta-feira pelos deputados. O ex-executivo foi ouvido sobre a dispensa de pareceres jurídicos prévios em diversos contratos suspeitos, celebrados sem licitação pela Cemig.
Daniel Godoy, que é servidor concursado da empresa desde 2013, afirmou que foi demitido do cargo gerencial depois desse episódio, pelo diretor jurídico Eduardo Soares, por “ter visões diferentes de como a Cemig deveria funcionar”.
Segundo Godoy, por decisão da diretoria executiva e do Conselho de Administração da Cemig, os pareceres jurídicos justificando a “inexigibilidade de licitação” passaram a ser emitidos posteriormente à celebração de contratos. Uma das empresas contratadas dessa maneira foi justamente a Kroll, que, no momento da ação classificada como “arapongagem” pelos deputados, ainda não teria um vínculo contratual firmado com a Cemig.
“Os pareceres jurídicos são uma opinião técnica especializada para subsidiar a tomada de decisão pela empresa para operar seus negócios de forma eficaz e dentro da legalidade”, justificou Daniel Godoy, ao responder a questionamento do relator da CPI da Cemig, deputado Sávio Souza Cruz (MDB), sobre a importância da elaboração prévia desse tipo de documento nas contratações bilionárias feitas sem licitação pela Cemig.
Contratos – Outro contrato celebrado assim teria sido com a empresa de advocacia Lefosse, conforme apontou a deputada Beatriz Cerqueira (PT). A Lefosse já teve como sócio o mesmo diretor jurídico da Cemig, Eduardo Soares. Ao longo do depoimento do ex-executivo, a parlamentar enumerou 34 contratos supostamente celebrados pela Cemig, de fevereiro de 2020 a junho de 2021, todos sob o argumento de “inexigibilidade de licitação” e em valor total superior a R$ 1 bilhão.
A prática, conhecida como “convalidação”, é a regularização de contratações depois dos serviços contratados já terem sido executados, expediente que deveria ser utilizado somente em situações emergenciais.
Segundo Beatriz Cerqueira, o período apurado coincide com gestão do atual diretor-presidente da Cemig, Reynaldo Passanezi Filho, selecionado pela empresa de recrutamento Exec, que também teria sido beneficiada por esse artifício. A contratação formal da instituição se deu mais de um mês depois da nomeação do gestor para o seu cargo.
Invasão de computador – Foi a ação da Kroll dentro do edifício-sede da Cemig que mais chamou a atenção dos deputados ao longo do depoimento de Daniel Godoy. Curiosamente, antes de começar a responder às perguntas, o ex-executivo, acompanhado de advogado contratado pela estatal, alertou aos parlamentares que, advertido pela direção da Cemig, não poderia quebrar o sigilo profissional e revelar informações sensíveis da empresa. Por esse motivo, poderia se reservar ao direito de não responder a alguma pergunta.
“Não entendo a direção da Cemig. Pede para o depoente preservar dados sigilosos na CPI, mas deixa uma empresa sem contrato ter acesso aos computadores com dados sensíveis, sem nenhuma cobertura legal que a resguardasse?”, questionou Sávio Souza Cruz.
O presidente da CPI, deputado Cássio Soares (PSD), perguntou a Godoy se ele se sentiu intimidado e de quem teria partido na Cemig a advertência, expressa na forma de uma petição protocolada na comissão. Por esse motivo, o ex-executivo se recusou a responder diretamente várias perguntas feitas pelos deputados. “Foi a presidência do Conselho de Administração sob autoria do diretor jurídico”, resumiu.
Dados pessoais – O ex-executivo contou que ao chegar para trabalhar se deparou com um formulário da Kroll preenchido a caneta comunicando-lhe que seu computador de trabalho havia sido vistoriado e informações haviam sido extraídas.
Preocupado com o volume de informações contidas no equipamento, muitas delas sensíveis e com dados pessoais dele e de terceiros, Daniel Godoy procurou primeiro seu superior imediato, um superintendente, e depois o diretor jurídico, para saber do que se tratava aquele procedimento, que ambos alegaram desconhecer.
Godoy relatou aos deputados que, ao tentar apurar o episódio, descobriu primeiro que a Kroll não tinha contrato com a Cemig. Depois, conseguiu junto ao setor de segurança da empresa cópia do vídeo que mostrava uma assessora direta do diretor jurídico acompanhando os investigadores da Kroll. Nesse ponto, teriam lhe dito que a investigação não teria ele como alvo.
Por sugestão do deputado Professor Cleiton (PSB), vice-presidente e primeiro signatário do requerimento que deu origem à CPI, foi aprovado requerimento para que Godoy entregasse à comissão cópia desta gravação.
Também foi aprovado requerimento para que a assessora da Diretoria Jurídica citada por Daniel, a mesma que teria apoiado a ação dos investigadores, identificada como Virgínia Kirchmeyer Vieira, também seja ouvida pela CPI da Cemig na condição de testemunha.
“Precisamos acionar a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para que tome providências legais sobre essa arapongagem, já que o mesmo sigilo profissional foi violado pela Cemig ao invadir, na calada da noite, o computador de seu funcionário”, sugeriu Professor Cleiton.
O deputado Zé Guilherme (PP), por sua vez, argumentou que, por se tratar de computador de trabalho do ex-executivo, a Cemig poderia legalmente fazer tal procedimento. “A empresa (Kroll) estava dentro da Cemig em atendimento a uma exigência do Ministério Público por uma investigação externa de um rombo dentro do setor de compras. Não são dados pessoais, são dados da empresa, que tem o direito de buscar essas informações”, justificou.
Grampo – Em reunião no início do mês passado, a Kroll foi acusada por Professor Cleiton de tentar espioná-lo para intimidar sua atuação na investigação. Segundo o parlamentar, uma perícia teria confirmado que seu telefone celular foi grampeado. Poteriormente foi realizada varredura na ALMG à procura de escutas. A empresa nega a acusação e acionou o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) para ter o episódio esclarecido.
Empresa que ganhou mas não levou pede ressarcimento
Em outro depoimento na CPI da Cemig nesta quinta, foi ouvido, na condição de testemunha, o representante legal da empresa Audac Serviços Especializados de Atendimento ao Cliente, José Roberto Romeu Roque. A Audac, apesar de vencer licitação para prestar serviços de call center na Cemig, não recebeu autorização para o início da prestação do serviço por parte da diretoria da estatal.
A multinacional também teria sido contratada sem licitação pela Cemig, por R$ 1,1 bilhão, para, ao longo de dez anos, prestar consultoria em transformação digital e implementar um modelo integrado de atendimento aos clientes, conhecido como omnichannel. A falta de concorrência em uma contratação direta desse porte e por prazo tão longo tem sido bastante criticada pelos deputados da CPI.
Já a AeC é a mesma empresa fundada por Cássio Azevedo, ex-secretário de Desenvolvimento Econômico do governo Romeu Zema, que já desempenhava essa atividade para a Cemig desde setembro de 2008, por três contratos. Cássio Azevedo faleceu este ano, vítima de câncer.
Perplexidade – Ao responder os questionamentos dos deputados, o empresário expressou sua perplexidade por ter assinado contrato com a Cemig em 5 de março do ano passado e ter feito investimentos superior a R$ 10 milhões, mas, misteriosamente, não ter recebido a autorização para iniciar a prestação de serviço.
Segundo José Roberto, apesar das dezenas de contatos da Audac com os gestores do contrato por parte da Cemig, a autorização foi sendo postergada até que, em 16 de fevereiro, foi comunicada a rescisão unilateral.
O empresário revelou que a Audac exige um ressarcimento de cerca de R$ 13 milhões à estatal. Segundo ele, se o impasse permanecer, a contenda pode ser judicializada.
“Temos 40 anos de experiência e nunca tive uma rescisão contratual dessa forma”, disse José Roberto.
“A empresa do senhor foi cozinhada em banho maria até acharem uma alternativa para continuar com a AeC. Nunca vimos tamanha aberração no gasto dos recursos públicos de uma empresa que deveria ser exemplo na prestação de serviços. Ao contrário disso, a Cemig foi completamente aparelhada e virou uma decepção para a população mineira”, resumiu Cássio Soares.