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sábado, novembro 23, 2024

Familiares de detentos dizem que prisões mineiras se transformaram em masmorras

É o que denunciaram dezenas de participantes de audiência pública da Comissão de Direitos Humanos. Gestores estaduais prometeram que supostas irregularidades serão apuradas e corrigidas.

Denúncias de tortura, superlotação, suicídios tentados e consumados, abuso sexual, transferências repentinas, restrições ao banho de sol, más condições de higiene e alimentação, inclusive com falta de alimentos ou comida estragada, maus-tratos aos familiares e logística de visitas precária, descumprimento de ordens judiciais, normas e regulamentos, não reconhecimento das associações de familiares e amigos dos detentos como instâncias legítimas de diálogo e, por fim, baixo efetivo e pouca qualificação dos trabalhadores do sistema prisional mineiro.

Essas foram os principais problemas que constam da plataforma online de recebimento de denúncias Desencarcera! e reforçadas em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) realizada na tarde desta nesta terça-feira (18/4/23). A reunião atendeu a requerimento da presidenta da comissão, deputada Andréia de Jesus (PT).

Ao longo de mais de cinco horas de audiência, foram dezenas de manifestações indignadas de familiares dos presos, inclusive com a citação nominal de diversos agentes penitenciários masculinos e femininos que seriam reincidentes no cometimento de abusos contra detentos e familiares.

Além da Jacy de Assis e da Penitenciária Professor João Pimenta da Veiga, também em Uberlândia, foram citadas diversas unidades prisionais por todo o Estado, em cidades como Três Corações (Sul), Francisco Sá (Norte), Patrocínio (Alto Paranaíba), Teófilo Otoni (Jequitinhonha/Mucuri), Divinópolis, Pará de Minas e Formiga (Centro-Oeste), São Joaquim de Bicas e até o novo Complexo Penitenciário Público-Privado (CPPP) de Ribeirão das Neves (ambos na RMBH), considerado modelo de eficiência no sistema pelo Executivo estadual.

Os representantes do governo estadual presentes na audiência da Comissão de Direitos Humanos reconheceram que ainda há muito a se aprimorar, mas garantiram que investimentos e mudanças de procedimentos já têm sido implementados para aprimorar o sistema prisional mineiro.

A superintendente de Humanização do Atendimento, órgão do Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen) da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), Ana Paula de Almeida Vieira Dolabella, disse que todas as denúncias e sugestões relatadas na audiência foram registradas e servirão para aprimorar a qualidade dos serviços, sobretudo de forma a estreitar o vínculo do detento com seus familiares. Ela prometeu uma resposta detalhada à comissão no prazo de 30 dias.

Já o superintendente de Segurança do Depen, Luciano Evangelista Cunha, lamentou que atualmente, das 172 unidades prisionais do Estado, 70 estejam interditadas por determinação judicial para movimentação de presos, conforme reivindicado por familiares. Em Ribeirão das Neves, segundo ele, são quatro interditadas e apenas uma liberada.

“O problema maior é mesmo a superlotação, mas quem trata da soltura é o Poder Judiciário. Mas vamos intensificar nossa ação nas unidades citadas aqui hoje para melhorar o atendimento. Nós queríamos que uma unidade com 200 vagas tivesse somente 200 presos. Mas isso ainda não é possível e fica ruim pra todo mundo, para o preso e para nós executarmos melhor nosso trabalho”, explicou Luciano Cunha.

Por fim, o chefe do Núcleo de Correição Administrativa (Nucad), Hudson Otorgantino dos Reis, órgão que é independente do Depen e atua de forma regionalizada, reforçou que todas as denúncias relatadas na audiência serão apuradas com a devida transferência.

Segundo ele, no ano passado, foram cerca de 700 processos administrativo-disciplinares instaurados e mais de 600 investigações preliminares, resultando em advertências, suspensões e até demissões no sistema prisional. Um dos canais de denúncia para isso é o Disque 181 (Disque-Denúncia) e os resultados são todos publicados.

Andréia de Jesus
“Vivemos numa sociedade punitivista. O Estado brasileiro prende muito e prende mal. Persegue nossa juventude que já não tem nenhuma oportunidade e a empurra para essas masmorras” – Dep. Andréia de Jesus

Mas a presidenta da Comissão de Direitos Humanos não se deu por satisfeita e prometeu reforçar a pressão para que este cenário comece a mudar, sobretudo com relação à Colônia Penal Professor Jacy de Assis, em Uberlândia (Triângulo), a campeã disparada que responde por cerca da metade das 2.877 denúncias registradas desde outubro de 2018 na plataforma Desencarcera! em um total de 236 unidades prisionais e 39 unidades socioeducativas.

A parlamentar reconheceu o desafio de fiscalizar as condições nas dezenas de unidades prisionais do Estado, daí a importância dos dados reunidos pela plataforma Desencarcera!, registrados sobretudo pelos familiares dos encarcerados.

“Fato é que essas pessoas querem mudar a realidade do nosso sistema prisional, com a presença da família em todo processo de execução da pena”, completou. A parlamentar também cobrou maior rigor na apuração de condutas irregulares e punição de agentes públicos, sendo apoiada pelo deputado Ricardo Campos, que reforçou as precárias condições das unidades prisionais do Norte de Minas, e Leleco Pimentel, ambos também do PT.

“Esses servidores públicos têm acesso à informação, ao que diz a lei, e mesmo assim praticam abusos. Isso é motivo para perder o cargo porque eles desobedecem a legislação que embasou sua contratação”, completa Andreia de Jesus.

Plataforma online recebe denúncias anônimas

A plataforma Desencarcera! recebe somente denúncias anônimas, boa parte delas recorrentes, e é mantida pelo programa de extensão Culthis da UFMG, que oferece gratuitamente atendimento jurídico, psicossocial e psicológico a presos e seus familiares.

Segundo sua coordenadora, professora Carolyne Reis Barros, mais do que apurar a veracidade dos relatos, a plataforma cumpre importante papel provocar o debate na sociedade para tentar mudar a triste realidade do universo prisional.

“Violam sistematicamente a integridade física, psíquica e moral dessas pessoas e seus familiares, que vão desde a abordagem corporal abusiva até mais graves como a tortura. Do ponto de vista prático, temos uma parceria com a Defensoria Pública para uso dos relatos no encaminhamento de ações civis coletivas”, explica a professora.

O representante da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, Leonardo Bicalho de Abreu, confirmou a parceria com o Desencarcera!, mas lamentou a falta de elementos comprobatórios para instruir de forma mais robusta as ações contra o poder público e de reparação civil.

Isso, segundo ele, poderia ser aprimorado por meio do monitoramento de vídeo obrigatório com preservação das imagens de todos os procedimentos realizados nas unidades prisionais, entre outras sugestões.

“Afinal, qual é a dificuldade do Estado de Minas Gerais em iniciar uma investigação séria sobre essas práticas? Por que o Estado tem se omitido se apurar e punir as torturas praticadas por seus servidores?”
Fernanda de Oliveira
Coordenadora-geral de Combate à Tortura do Ministério dos Direitos Humanos

Outro importante instrumento de monitoramento e denúncia das irregularidades do sistema prisional mineiro é o relatório anual do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, cuja última edição, com 100 recomendações, foi encaminhado ao Executivo estadual em agosto do ano passado.

É o que lembra a coordenadora-geral de Combate à Tortura e Graves Violações de Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Fernanda Vieira de Oliveira. As denúncias, segundo ela, foram obtidas por meio de vistorias e denúncias ao Disque 100 (Disque Direitos Humanos).

“Tudo o que foi relatado aqui é tortura. Pelos nossos cálculos, entre presos e familiares, são de 65 mil a 73 mil vítimas de tortura em Minas Gerais. E quem aquiesce também comete tortura”, aponta Fernanda Oliveira.

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura foi criado pela Lei federal 12.847, de 2013, é o órgão responsável pela prevenção e combate à tortura e a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, conforme protocolo da Organização das Nações Unidas (ONU).

Basta cumprir direitos garantidos em leis e tratados

O simples cumprimento da legislação e tratados existentes também foi defendida pelo vice-presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Conedh) e professor da Faculdade de Direito da UFMG, Fernando Gonzaga Jayme.

Nesse caso, ele cita a Lei de Execuções Penais e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que remonta a 1969 e foi assinada pelos estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), entre eles o Brasil.

“Estamos falando de garantir um mínimo de dignidade. Se o Estado cumprir o que diz a Lei de Execução Penal, que garante isso, já estamos satisfeitos. E quando ele não faz isso, o Estado é delinquente”, sentencia o professor. Ainda na avaliação dele, diante da falência patente não há como falar de um sistema de justiça.

“Esse indivíduo está aprisionado, privado da liberdade, mas não perdeu a condição de ser humano, embora esteja em uma situação de extrema fragilidade. E o Estado ainda usa de crueldade para subjugá-lo mais”
Fernando Gonzaga Jayme
Vice-presidente do Conedh

Negros, pobres, moradores das periferias, enfim, cidadãos invisibilizados são, estatisticamente, a grande maioria da população carcerária do Brasil e dos EUA, que crescem na mesma proporção, segundo aponta o vice-presidente do Conedh. “Tratar da recuperação do cidadão aprisionado é pensar a sociedade que estamos construindo”, conclui.

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